Casa obscura, cozinha que não recebe a luz do Sol, rua plana e movimentada, corredor cinza e sem nem uma planta que nasça diretamente do solo (no máximo alguma planta estranha num vaso de barro marrom). Os fundos se dão para um enorme campo do bairro, com pequenas casas ao longe, outros campos mais longe ainda, torres de energia elétrica, o céu despencando do azul para o laranja.
E você se sente morta.
Ouve os gritos, risadas, pedaços de conversas dos que passam em frente à casa, você sente o frio do fim de tarde e ao mesmo tempo o calor do pôr do Sol.
Sua infância está mais viva do que nunca dentro de você, e fora também. Você se transformou numa das amigas de sua mãe que nunca mais viu (nem tornará a ver).
Compra produtos de limpeza na casa do pai de sua ex-professora, e de frente para a casa do vendedor você vê uma rua, onde havia aquele bar em que seu pai parava. Ao redor do bar algumas casas e mato e barranco. Os produtos de limpeza são do tipo que se usava nos anos ’90, aquele cheiro da sua infância, que é como uma foto quase em sépia, com aquelas famílias tão estranhas e aqueles sorrisos tão sinistros, cabelos engraçados, histórias pra contar.
Você olha para as torres de energia e se vê na estrada, se vê longe dali, em um lugar que também não é bom, e você só quer gritar e se despir de si mesma.
Vira para seu quintal e imagina crianças brincando ali, e quanto mais você pensa, mais volta no tempo, e mais dói, mais vive de seu passado. Não que ele fosse ruim, mas são coisas como de outra vida, sensações pesadas que mais ninguém percebe, mais ninguém entende. Nesse quintal você se vê criança, com outras crianças, não querendo estar junto delas, não querendo estar fora de sua casa. É o pôr do Sol. O pôr do Sol é como a morte. A morte deste dia, destas horas, destes momentos.
Você não quer estar ali nem com a pessoa mais amorosa do mundo, você só quer fugir, mas esse lugar te faz pensar que nenhum lugar deste mundo é seguro e suficiente para te satisfazer. É uma jaula, uma prisão, ou pior: um cômodo de concreto sem janelas, portas, frestas, brechas. É um cubo que te sufoca e te incapacita de se mexer.

Uma cama de casal que não te deixa dormir, a respiração do outro que entra quente pelo seu nariz como fogo e queima-te por dentro. Você só quer chorar e gritar, por mais que o ame, por mais que ele seja bom para você e te faça carinhos e cafunés.
Quer ir para essa estrada de campos estéreis e torres de energia elétrica que são sua única companhia. Você se vê passando por elas, e elas, mesmo paradas acenam pra você. Você sente saudades, sim. Você é humana. Mas se sente livre, sem passado ou futuro, o que importa é o agora. Você não quer que essa estrada acabe nunca, você não quer ver civilização, você quer morrer dirigindo este carro (mas você não está dirigindo, você está flutuando como se estivesse sendo guiada por um motorista invisível, num automóvel invisível. Seus cabelos ao vento e tudo o que você vê é aquela camada marrom das fotos antigas, aquele cheiro de passado que te acompanha, mas que não te sufoca. Porque você é dona do seu rumo, e nada te faz voltar por esse caminho. NADA.
