26.4.11

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Casa obscura, cozinha que não recebe a luz do Sol, rua plana e movimentada, corredor cinza e sem nem uma planta que nasça diretamente do solo (no máximo alguma planta estranha num vaso de barro marrom). Os fundos se dão para um enorme campo do bairro, com pequenas casas ao longe, outros campos mais longe ainda, torres de energia elétrica, o céu despencando do azul para o laranja.
E você se sente morta.
Ouve os gritos, risadas, pedaços de conversas dos que passam em frente à casa, você sente o frio do fim de tarde e ao mesmo tempo o calor do pôr do Sol.
Sua infância está mais viva do que nunca dentro de você, e fora também. Você se transformou numa das amigas de sua mãe que nunca mais viu (nem tornará a ver).
Compra produtos de limpeza na casa do pai de sua ex-professora, e de frente para a casa do vendedor você vê uma rua, onde havia aquele bar em que seu pai parava. Ao redor do bar algumas casas e mato e barranco. Os produtos de limpeza são do tipo que se usava nos anos ’90, aquele cheiro da sua infância, que é como uma foto quase em sépia, com aquelas famílias tão estranhas e aqueles sorrisos tão sinistros, cabelos engraçados, histórias pra contar.
Você olha para as torres de energia e se vê na estrada, se vê longe dali, em um lugar que também não é bom, e você só quer gritar e se despir de si mesma.
Vira para seu quintal e imagina crianças brincando ali, e quanto mais você pensa, mais volta no tempo, e mais dói, mais vive de seu passado. Não que ele fosse ruim, mas são coisas como de outra vida, sensações pesadas que mais ninguém percebe, mais ninguém entende. Nesse quintal você se vê criança, com outras crianças, não querendo estar junto delas, não querendo estar fora de sua casa. É o pôr do Sol. O pôr do Sol é como a morte. A morte deste dia, destas horas, destes momentos.
Você não quer estar ali nem com a pessoa mais amorosa do mundo, você só quer fugir, mas esse lugar te faz pensar que nenhum lugar deste mundo é seguro e suficiente para te satisfazer. É uma jaula, uma prisão, ou pior: um cômodo de concreto sem janelas, portas, frestas, brechas. É um cubo que te sufoca e te incapacita de se mexer.

Uma cama de casal que não te deixa dormir, a respiração do outro que entra quente pelo seu nariz como fogo e queima-te por dentro. Você só quer chorar e gritar, por mais que o ame, por mais que ele seja bom para você e te faça carinhos e cafunés.
Quer ir para essa estrada de campos estéreis e torres de energia elétrica que são sua única companhia. Você se vê passando por elas, e elas, mesmo paradas acenam pra você. Você sente saudades, sim. Você é humana. Mas se sente livre, sem passado ou futuro, o que importa é o agora. Você não quer que essa estrada acabe nunca, você não quer ver civilização, você quer morrer dirigindo este carro (mas você não está dirigindo, você está flutuando como se estivesse sendo guiada por um motorista invisível, num automóvel invisível. Seus cabelos ao vento e tudo o que você vê é aquela camada marrom das fotos antigas, aquele cheiro de passado que te acompanha, mas que não te sufoca. Porque você é dona do seu rumo, e nada te faz voltar por esse caminho. NADA.

24.4.11

To Live is To Die

Tenho uma definição de grandiosidade meio contrária. Um exemplo são as represas, piscinas grandes e fundas, que conseguem me meter mais medo e dar maior sensação de afogamento que o próprio oceano.
É assim com as cidades à noite. Parecem maiores que o próprio mundo e mais perigosas, sendo o mundo tão mais perigoso em outros lugares.
Talvez eu seja um bicho do mato criado na cidade.
Desde pequena, quando voltava da casa da minha madrinha à noite, ou de qualquer outro lugar, vinha calada no lado direito do banco de trás do carro, olhando para as ruas, lojas, muros, céu estrelado. Isso sempre me deu muito medo, ainda mais depois da minha primeira viagem à Paraíba em '99. Numa cidade de interior, sabem? Sem pichações, transporte coletivo por todo lado, luzes, periferia.

É uma coisa que vai além da minha explicação, e além do próprio medo. É um terror civilizado, contido e controlado. Coisa que ninguém jamais soube, nem nunca chegou em conversa nenhuma. Não em profundidade.
Minha prima conversava comigo sobre tudo, de constelações à bruxaria e leituras das nuvens. Não sei eu se essas coisas existem de verdade pelo modo que eu vejo, mas pra uma criança que adolesce* com isso a coisa fica séria. Você começa a se perguntar mais sobre o universo, a ter sensações arrepiantes e imaginar a vida de todo mundo à noite.

Parece normal e sem sentido, mas põe o lado sinistro na coisa. Lembranças diversas espalhadas por sua mente se misturando com o pavor do mundo, a vontade de chegar em casa e dormir, mas estando hipnotizada com aqueles muros de terrenos baldios com propaganda política; bares de periferia com mulheres mal-feitas de corpo com uma roupa curta qualquer gritando impropérios, paredes pintadas a cal verde-piscina, alguns homens e a tv de '14 ligada em algum programa popular de domingo que dura mais de duas horas. Casas de luz acesa e adesivos na janela, e você imagina a mobília, o filho, a mãe, o cheiro da cozinha, a voz do pai e a tv ligada. A maldita tv ligada naquele programa popular. Você percorre ruas escuras, outras de pouca iluminação, imóveis sortidos, plantas, sombras de pés de eucalipto, mais muros desta vez com desenhos amadores da Turma da Mônica pertencentes à escola municipal, e você imagina aquela escola por dentro, o cheiro da merenda e dos produtos de limpeza, a cara das tias da cozinha, dos professores, das alunas de cabelo liso e castanho, o lápis de cor, o hino nacional, o sinal de intervalo e troca de aula... O medo toma conta de você, o mundo é tão grande, tão assustador... E ainda não chegou a parte dos estabelecimentos comerciais pichados, padarias (quem sai de casa pra comprar pão à noite?) ainda abertas, Casas Bahia fechada e também pichada naqueles mini-azulejos brancos e oh! O que está escrito? Como subiram lá em cima? VIDA LOKA - sim, muito louca, você imagina os pichadores ali, e o ponto de ônibus está vazio, os ônibus reservados, os ônibus cheios, e você se imagina dentro dos ônibus, lá no ponto, andando do lado do muro, estudando naquela escola e comendo aquela comida daquela casa com adesivos na janela, que pode ser um apartamento. Você tem medo de apartamentos à noite, sim. É uma realidade além daquela de andares abaixo e ruas que cruzam. As árvores enegrecidas, e você pensa que elas são monstros disfarçados, à espreita, como IT debaixo da ponte, e sim, essa presença que você sente, esse algo a mais no ar, esse terror do infinito, quantos mundos são como esse? Quantas garotas extraterrestres não estão pensando a mesma coisa que você, agora?
All this I cannot bear
To witness any longer
Cannot the kingdom of salvation
Take me home


Preste muita atenção no som a partir dos 05:12, isto define a dimensão do que eu quero expôr, é quase uma trilha sonora, uma tradução deste sentimento em música.